Microtraições no mundo digital: análise do psicólogo Renan Santana sobre os novos limites da fidelidade
No universo acelerado das redes sociais, onde a interação acontece em segundos e a atenção se tornou um recurso raro, comportamentos aparentemente inocentes — como curtidas estratégicas, conversas discretas e interações fora de hora — vêm ganhando novo peso dentro dos relacionamentos. São as chamadas microtraições, um fenômeno cada vez mais comum e que, segundo …
No universo acelerado das redes sociais, onde a interação acontece em segundos e a atenção se tornou um recurso raro, comportamentos aparentemente inocentes — como curtidas estratégicas, conversas discretas e interações fora de hora — vêm ganhando novo peso dentro dos relacionamentos. São as chamadas microtraições, um fenômeno cada vez mais comum e que, segundo o psicólogo e neurocientista Renan Santana, revela muito mais sobre nossa sociedade do que sobre o “certo ou errado” no amor.
Curtidas, DMs e segredos: quando um gesto vira sinal de alerta
De acordo com Renan, uma curtida isolada não tem poder de destruir um relacionamento. O problema surge no padrão: quando as interações são repetidas, direcionadas e carregadas de intenção.
“Não é a curtida em si, mas o contexto”, afirma.
Para ele, a maturidade relacional exige o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade. “Não dá para transformar o amor em vigilância”, destaca o psicólogo. Por outro lado, esconder conversas ou manter interações que precisam ser ocultadas já indica outro tipo de movimento: o da quebra de confiança.
O que realmente machuca: o ato, a intenção ou o segredo?
Renan explica que, para a maioria das pessoas, o impacto emocional não está na ação, mas no significado que ela carrega: medo de substituição, insegurança, sensação de competição por atenção.
“Curtidas e mensagens são sintomas. A dor mora na interpretação”, pontua.
Para ele, controlar o outro é o caminho mais rápido para romper o vínculo. “O amor saudável não exige fiscalização — exige escolha diária.”
Quando a conversa online evolui para algo maior
Segundo o especialista, a evolução de uma interação digital para um envolvimento emocional mais profundo costuma acontecer em períodos de vulnerabilidade: desgaste do casal, rotina pesada ou sensação de desatenção.
“A pessoa passa a buscar no digital o que sente falta em casa: validação, presença emocional, alguém que a veja”, explica.
Muitas vezes, o encontro presencial, quando acontece, decepciona: “O prazer estava na fantasia, não na realidade.”
A dopamina como combustível da atenção digital
O vício por curtidas e mensagens não é mera fragilidade humana. Renan lembra que as plataformas foram desenhadas para isso.
“Cada notificação ativa o sistema de recompensa do cérebro. É o mesmo mecanismo de vícios comportamentais”, diz.
A lógica é clara: quanto mais tempo o usuário permanece conectado, mais valioso ele se torna para o mercado digital. O resultado? Uma dependência emocional crescente por validação externa.
Microtraição é desejo pelo novo — ou fuga de desconfortos internos?
Para Renan, ambos.
O cérebro busca novidade, e relacionamentos estáveis inevitavelmente se tornam previsíveis. Ao mesmo tempo, as redes servem como anestesia emocional para quem tenta fugir de frustrações, solidão ou ansiedade.
“Muitas microtraições revelam menos sobre atração pelo outro e mais sobre o que falta no vínculo principal — ou dentro da própria pessoa.”
Sinais sutis de que alguém está cruzando a linha emocional
Nem sempre há mudanças drásticas, mas Renan aponta indícios comuns:
- cuidados excessivos com privacidade digital;
- longos momentos isolado com o celular;
- conversas mais rasas no relacionamento;
- queda da intimidade;
- busca crescente por reforço emocional fora da relação.
O psicólogo reforça que a reação ideal não é acusar, e sim abrir espaço para diálogo maduro. “Às vezes, uma conversa honesta é o que impede uma traição de nascer.”
Os novos limites da fidelidade
Para Renan, a noção de fidelidade está sendo atualizada à força.
“Ainda estamos presos ao amor romântico, que prega exclusividade total. Mas isso não combina com o mundo hiperconectado de hoje”, afirma.
Ele defende que cada casal precisa construir seus acordos: o que significa fidelidade para nós?
Curtir é permitido? Conversar com ex é aceitável? Manter amizade com alguém que já demonstrou interesse é saudável?
“Não existe contrato universal. Existe o que funciona para duas pessoas específicas.”
Homens e mulheres: ainda existe diferença nas microtraições?
Renan explica que a diferença não está na biologia, mas na cultura.
“Houve uma socialização desigual, mas isso vem mudando. Hoje, homens e mulheres vivem desejos e deslizes de forma muito mais parecida.”
Como discutir limites sem moralismo e sem relativizar tudo?
O caminho é o diálogo transparente, baseado em valores e não em regras rígidas.
“Importar um modelo pronto é receita para desastre”, diz Renan.
O psicólogo defende um amor livre e responsável: livre porque é escolha; responsável porque reconhece o impacto das próprias ações no outro.
Um desafio da era digital
Para Renan Santana, microtraições são sintomas de um tempo acelerado, de abundância e de conexões superficiais.
“O verdadeiro desafio não é vigiar quem amamos, mas sustentar liberdade e vínculo ao mesmo tempo. Isso exige presença, conversa e maturidade emocional.”

